segunda-feira, 28 de setembro de 2015

O Lado B

          Planejar a vida faz parte do cotidiano de muita gente, desde a infância. Começamos bem cedo a pensar “o que vou ser quando crescer? ”. Impulsionados por um sentimento próprio ou por um questionamento social, sempre compreendemos nossos desejos para o futuro e sua realização como um degrau para a felicidade.
            Nem sempre é assim. Muitos planos não se concretizam, sonhos nem sempre se realizam. O emprego pelo qual batalhamos, o casamento com aquele que amamos, os filhos planejados, a casa, as viagens, o corpo ideal, tudo isso pode simplesmente não acontecer, ou mesmo nos causar surpresa por não corresponder às nossas expectativas. Então, vem a frustração, com a qual, geralmente, não estamos acostumados a lidar.
            O que fazer, então? Sentar e chorar, cortar os pulsos, entregar-se a uma postura amarga diante do mundo não vão adiantar. Porque é preciso entender que nem sempre temos controle sobre tudo. Essa mania de achar que vamos ter o futuro que planejamos, ou que planejaram para nós, só nos leva à terrível sensação de fracasso. É preciso ter maturidade para associar desejo e realização.
            A felicidade não corresponde à efetivação de todas as nossas vontades, mas à capacidade de reinvenção de si mesmo, de transformação do cotidiano, de aceitação e compreensão de nossos limites e dos limites do outro. Refazer planos, reconstruir sonhos, ver o lado B da vida, projetar-se naquilo que é possível e estabelecer metas reais pode ser muito enriquecedor e trazer alegrias que sequer imaginamos um dia.

            Talvez a tão sonhada felicidade esteja no desafio diário de encontrar capacidades que outrora desconhecíamos, faculdades antes inimaginadas, habilidades desconhecidas, amores possíveis, uma vida surpreendentemente feliz. Basta virar o disco.

Por Flavia Abreu





"O Nascimento de Vênus". Sandro Botticelli. séc. XV

Sobre o direito de sofrer


É preciso ser feliz. Este parece ser o lema do momento. Todo o mundo quer ser feliz, todos buscam a felicidade. Parece que virou moda dizer “você tem que ser feliz” ou “eu só quero ser feliz”.
O que seria a felicidade? Talvez um alvo complexo, tão cheio de obstáculos e tão raro, que, para atingi-lo, seriam necessárias forças extraordinárias?
Não se permitem mais, hoje em dia, o choro, a tristeza, sequer a necessária melancolia diante da vida. Sim, necessária para o olhar crítico ante os dramas da humanidade. É preciso estar sorrindo. O tempo todo.
Ora, como alegrar-se quando se perde um ente querido, quando se termina um casamento ou quando se perde um emprego? Tenho a impressão de que deletaram o luto do banco de sentimentos humanos. Todas as pessoas sofrem, mais ou menos, muito ou pouco. A vida inteira ou por alguns anos, o fato é que a dor existe e precisa ser enfrentada sim, porém, antes, precisa ser sentida, sofrida, refletida internamente. Parece que jamais seremos capazes de seguir em frente após uma perda apenas porque estamos maturando e amadurecendo a situação dentro de nós mesmos, porque sempre tem aquele “alegrinho” que vem dizer: “você tem de reagir”, “você precisa superar”, “você tem o direito de ser feliz”.
E se eu não quiser superar, pelo menos, por um tempo? Serão mesmo todas as angústias “superáveis”? Quem “supera” a dor de perder um filho, por exemplo? Se eu quiser sofrer, chorar à ocasião do término de uma relação que era importante para mim, sem dar ouvidos à famosa frase da atualidade, tão cheia de descartabilidade, “a fila anda”, tenho de fazer isso. Por que o mesmo que me dá o direito de ser feliz não me dá o direito de penar?
Porque sofrer necessariamente amadurece, aprimora o ser humano, aperfeiçoa a sua atitude diante da vida. E ninguém quer amadurecer. Preferem viver a juventude eterna, a do tênis da moda, do macarrão instantâneo, a juventude da casa dos pais. Uma alegria intensa, insana, impensada, que não permite que se compreenda a efemeridade da vida, o grande desespero humano. Sorrir o tempo todo demonstra muito mais os medos de uma pessoa do que a sua coragem.



Por Flavia Abreu





"Bóreas". John William Waterhouse. Óleo sobre tela. 1903

quarta-feira, 29 de julho de 2015

FOICE

Hoje eu revirei todas as gavetas procurando a alegria.
Abri os armários, a geladeira...
Folheei os livros, tirei as tampas das panelas,
Levantei todas as almofadas, uma a uma.
Procurei sob os tapetes,
Embaixo da cama.
Estranho... nem na caixinha de remédios eu a encontrei.


Por fim, como um bicho faminto, virei as latas de lixo.


A alegria se foi.
Foice à alegria.



Flavia Abreu.







Imagem: Frederic Leighton. "Orfeu e Eurídice".



terça-feira, 14 de abril de 2015

A crônica do risoto que me preparou

Fazer um risoto é uma das coisas mais acuradas que existem. É preciso ser perseverante. Desde a escolha dos temperos até o momento de servir o prato, o risoto é um grande exercício de paciência e exige plena atenção. Ele demanda entrega, cuidado, dedicação. 

A vida moderna, urbana principalmente, vem, ao longo dos anos, robotizando as pessoas. Vivemos escravizados pelo relógio. O horário, o prazo de entrega, o vencimento, a meta vão roubando um pedaço de nós, a cada semana, dia após dia. 

Nosso sabor não tem apuração, nosso orgasmo tem limite, nosso olhar tornou-se um golpe de vista, a conversa, o abraço foram roubados de nós para que pudéssemos produzir. Convenceram-nos de que "tempo é dinheiro". Resta saber quem é o dono do tempo que produz o dinheiro para quem.

Hoje eu fiz um risoto de abobrinhas. Pensei no risoto bem antes de prepará-lo; eu me apaixonei por ele. Escolhi as abobrinhas e os temperos. Preparei o caldo de legumes, piquei as cebolas. 

O risoto é um prato que, durante o preparo, você não pode parar de misturar. Enquanto refoga o arroz na cebola e no azeite, o caldo vai fervendo em outra panela.  O perfume do prato muda quando acrescentamos o vinho, e toda a aura da cozinha se modifica. Um sorriso apareceu no meu rosto, ao ver aquele vinho na panela.

Eu me envolvi, provei cada etapa. O risoto foi se transformando diante dos meus olhos. A textura do arroz mudou completamente a cada concha de caldo de legumes que eu incluía na receita. O prato nascia comigo, sabores surgiam vagarosamente, durante o exercício da mistura dos ingredientes. Um mistério, até mesmo para a mulher mística que combinava os elementos naquele movimento de alquimia.

A manteiga e o queijo alteraram de vez meu risoto. Estava pronto para ser provado, durante um almoço tranquilo. À mesa, com meu marido, televisão e telefone desligados, conversávamos e comíamos. Apenas.

Não sei se eu preparei o risoto ou se ele me modificou. Cozinhar me apontou caminhos. Abandonei a pressa. Despi-me de todos os papéis da minha vida para me dedicar àquele momento. Ali estava eu, inteira. 




Por Flavia Abreu